quinta-feira, 3 de junho de 2010

o cão

Já havia passado a virada da noite e eu caminhava por aquelas ruas desertas com mais tempo para aguçar minha percepção. Uma névoa tímida pedindo permissão para invadir a cidade. Ruas calçadas com pedras desalinhadas. Nessa hora da noite é fácil ouvir os gritos de dor vindo dessas pedras. O ar frio comprimia meu peito e, sem perceber, meus passos já se descreviam mais curtos e pesados. Me assustei com um cão ao meu lado. Um vira-lata de médio porte, de pêlos negros e extremamente magro. Estranho que, apesar do silêncio, não havia notado sua chegada. O cão, um tanto inquieto, caminhava ao meu lado implorando minha companhia. Olhava para todos os lados e se movimentava como se, a qualquer momento, necessitasse demonstrar rendição, se assustando com toda sombra e até mesmo com as folhas das árvores que se mexiam com o vento. Com um urro mal pronunciado tentei afastar o animal de perto de mim, mas percebi de forma estranha que naquela noite eu era o que demonstrava menor perigo a ele. Olhei nos olhos dele e não consegui entender. Os sem alma não ajudam muito nessas horas. Tentei descobrir o que o amedrontava tanto. Estávamos sozinhos, andando em direção à Cidade Baixa onde o frio era maior. Naquele lado da cidade os animais não emitiam som algum, nem mesmo os insetos noturnos, todos em absoluto silêncio. O frio já endurecia meus pés e pude perceber que meus passos estavam ainda mais pesados. Pouco mais a frente senti um forte vento assoprado de todas as direções. O maldito cão parou imediatamente de andar e forçou um choro comprimido abaixando sua cabeça sem olhar diretamente para mim. Nessa hora percebi o que o atormentava. Olhei para o cão e, quando me virei, vi o que o atormentava. Maldito cão-guia amaldiçoado a caminhar por essas ruas. Maldito cão-guia que me guiou até aqui. Maldito cão-guia, escravo morto.

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