quarta-feira, 31 de março de 2010

os demônios jogam cartas

Certa vez vi a beleza. Discreta, simples porém imponente. Passei por ela tendo intenção de fazê-la me ver.
Um simples fato ocorrido em menos de um segundo eternizado em uma troca de olhar como a contar em uma eternidade. A beleza olhou pra mim, e sem intenção alguma, a parecer um simples descuido, deixou expostos os seus olhos e pude ver além de minha percepção. Vi sua alma.
Ali parada, serena, conversando com dois dos que se dizem mortais, olhou pra mim e me mostrou o vazio de sua alma. Tal visão horrorizou o mais frio e rude monstro.
Sai. Corri. Fui para bem longe. Longe onde o canto não chega, onde o vento não assopra. Me escondi atrás de uma partitura. Um adágio escrito para o mais triste e odioso instrumento.
Me vi finalizando a partitura quando, por acaso, me deparei com um borrão no alto de Si menor.
Esfreguei, raspei, tentei apagar. Quando consegui arrancar uma pequena parte do borrão, ouvi uma voz terrivelmente assustadora e raivosa dizendo - Não apague! - Assustado, caí por temor e me afastei da partitura. Foi quando vi o mestre caído, sentado em seu trono, carimbado em minha partitura. Em minha música.
Aterrorizado fechei os olhos e raspei com toda minha força tal mancha viva. E, como um livramento, fui lançado em outra dimensão, Na dimensão real onde todos os seres dormem e acordam, dentro de um quarto escuro.
Nesse quarto me vi completamente imobilizado. Um ser caído segurava minhas mãos, um ser caído me estrangulava, e um ser caído segurava minha língua.
Tentei pedir socorro mas não conseguia pronunciar as palavras vindas da Luz. Me sufocavam. Certo de não conseguir nenhuma outra ajuda, dei meu último fôlego a favor de uma palavra sussurrada. Chamei a Luz. Vi todos os seres e vi o que estava em meu quarto. Sim, era meu quarto. Vi a Luz rasgar a densa escuridão, e vi por mais uma vez eu, um imperdoável, escapar da morte dos eternos.
Quinze dias se passaram até acontecer tudo e ver novamente o olhar da beleza. Mas eu já tinha visto. Já conhecia os passos. Já cantava a música. Já havia sido alertado sobre a outra música que viria. Já havia sido alertado sobre o desprezo, e sobre a morte.
Ando sozinho. Me volto à velha promessa e me prendo em todos os mundos.
Sobreviverei sozinho.
Certa vez a fera viu a face da beleza, e a beleza acalmou a fera. Desde então a fera temeu a morte.
Certa vez a fera deixou de ver a face da beleza. Desde então a fera não temeu a morte.

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